quinta-feira, 30 de julho de 2015

Os Vaqueanos (Ou a criação do Herval)

Publicação: Fabio Duarte


Esse Conto Ficção Foi escrito pelo Professor e Advogado Arnóbio Zanottas Pereira​ que por muitos anos lecionou em Herval.

Os Vaqueanos
             (Ou a criação do Herval) 

Ano de 1784. Rafael, com a luneta expandida, olhou para o leste. Conseguiu vislumbrar algo que teria sido um forte, agora em ruínas, na embocadura do Piratinin.  Depois, correu o olhar pela extensa planície do sul, ao longe, onde se fundia o céu com a linha do horizonte. Corria o óculo de alcance ora para o oeste, ora voltando lentamente para o outro lado. Por fim, olhou abaixo o arranchamento do Passo da Maria Gomes que, dali do cerrito, onde subira com o Alferes Guilherme, era visto em toda a sua plenitude.
Passou a luneta para o outro e sentou-se na raiz de uma caneleira frondosa que lhes dava sombra. Quedou-se, pensativo, com o olhar perdido naquele verde à sua frente, do outro lado do rio serpenteante.
Novamente aquela idéia obsessiva o obrigava a uma confidência com seu companheiro de tantas incursões pelas pradarias da Província. 
– Sabes, Guilherme, é muita judiaria uma região tão bonita como essa, além do rio, não ter dono e nós não termos coragem para conquistá-la?...
O Alferes, que olhava para os lados das Asperezas, fechou a luneta, vagarosamente, colocando-a sobre o alforje que estava no chão a seus pés. Caminhou em volta da árvore onde estavam e voltou com três pedrinhas e dois galhos pequenos de vassoura vermelha. Sentou-se defronte ao Coronel que, quieto, cuidava sua movimentação.
Desgalhou os ramos. Amontoou as três pedrinhas dizendo:
- Vê, amigo, se estou errado. Estes são os três cerros que vemos ao poente, mais à esquerda daquele cerro chato. Do lado desta pedrinha nasce aquele arroio grande que morre lá embaixo, nos pantanais, quando encontra a Mirin – e apontou com o braço na direção da lagoa. E este é o Piratinin – continuou – encostando à outra pedra o outro galho, em paralelo ao primeiro. Tirou da algibeira um fuzil, que usava para acender o pito, colocou-o lá embaixo, em pé, à direita do rio, como se fosse o antigo Forte de São Gonçalo, e continuou a sua fala:
– Rafael, nós conhecemos, como ninguém, estas paragens. Daqui, até além do Tacoary, são como a palma da nossa mão. Vamos aproveitar que os espanhóis não conhecem a região e estão atrapalhados, peleando com os charruas, lá no Rio da Prata, para fazermos um acampamento num daqueles três cerros. Depois, se o Vice-Rei deles der em grito, o nosso pode responder, com cautela, que estamos na nascente do arroio a que alude o tratado. E, rio e arroio nascendo juntos, e paralelos correndo em direção à Mirin, ajudam a nossa vontade e a nossa Coroa. Tomemos conta dessas pradarias que ficam entre essas duas linhas. Não é o que tanto cobiças?... Quem sabe?!
Longo tempo e os dois calados. O alferes insistiu:
– Que lhe parece, Coronel? O silêncio foi maior enquanto se acomodavam para voltar. Desceram o cerrito.
Dois meses depois Guilherme, comandando oitenta e seis soldados, cumprindo ordens do Governador da Capitania, levantava um acampamento numa coxilha onde eram abundantes os ervais. Levara carpinteiros, pedreiros, oleiros, latoeiros, padeiros, víveres, folhas-de-flandres, pregos e ferramentas para o trabalho pesado de construção.
Quando a Vila já estava consolidada, o Coronel, ainda Governador, distribuiu terras para seus fiéis soldados, todas do lado direito do arroio grande que nascia nos cerros.
Só Guilherme não aceitou dádiva nenhuma. Queria voltar para a sua terra natal nos Açores. Contava quarenta e oito anos, a mesma idade de Rafael Pinto Bandeira quando, em 1788, pegou carona num brigue que levava o Coronel até a Corte de Lisboa.

Fizeram escala na Ilha de São Jorge onde Rafael passou uns dias na casa de pedra construída por Wilhelm Van der Hagem, fidalgo de linhagem flamenga, um antepassado do seu Alferes. Na Vila do Topo, de onde saíra para se aventurar na Colônia do Brasil o vaqueano Guilherme da Silveira.  

Um comentário:

  1. O prof. Arnóbio foi muito feliz neste seu conto. Embora seja um texto de ficção, se aplica perfeitamente a realidade haja vista que o personagem principal, o cenário e o contexto em que se desenrola a narrativa são reais: Pinto Bandeira e a luta pela posse e consolidação da faixa de terras entre os rios Piratini e Jaguarão, no último quartel do século XVIII. Território disputado por portugueses e espanhóis. E o estabelecimento da guarda militar portuguesa nos serros do Erval foi ponto estratégico nas pretensões da coroa portuguesa e Pinto Bandeira, o grande vaqueano, conhecedor como pouco de cada rincão, de cada sanga, arroio, destas paragens foi o grande responsável pela conquista desta fértil faixa de terras.
    A guarda de São João do Erval tinha como incumbência controlar a entrada das partidas espanholas pelo de N. S. da Conceição (passo do Centurião) no rio Jaguarão, principal ponto acesso ao território em disputa, além de dar proteção aos vassalos da coroa portuguesa que iam se estabelecendo pelo mesmo. Mas, ante a ‘grita’ das autoridades de Buenos Aires, Pinto Bandeira justificava o acampamento como ponto de apoio no combate ao contrabando e ao banditismo que imperavam na região. Por sua vez, o Vice Rei de Buenos Aires acusa o próprio Pinto Bandeira e sua clã, o maior de todos os contrabandistas e ladrões de cavalos.
    Pendengas a parte, quando em 1801, o acampamento foi levantado, já existia um considerável arranchamento no local; Esta, as origens da cidade de Herval. Para quem quiser saber mais sobre o Herval, temos o livro ‘História do Herval, descrição física e histórica’ de Manoel da Costa Medeiros, que abrange um período que vai até a segunda década do século 20.
    Há algum tempo ando a cata de informações concretas sobre o estabelecimento da guarda nos serros do Erval no ano de 1784, como nos diz Medeiros em seu livro, bem como da sua transferência do passo da Maria Gomes, no rio Piratini para as nascentes do arroio Grande. Até agora não tive sucesso.
    Troquei uma rápida mensagem com o Arnóbio, já que ele ambienta o seu conto neste cenário. Era uma esperança. Ele me confirmou que a data era aleatória. A fonte dele era o próprio Medeiros. Voltei a estaca “zero”.
    Tenho provas concretas do estabelecimento da guarda nos serros do Erval, nas margens do arroio de mesmo nome (da piscina), que na verdade naquele ponto não passa de uma sanga, em abril de 1791. São cartas trocadas entre Pinto Bandeira e seus superiores, dando conta deste fato.
    Quanto ao estabelecimento da guarda em 1784, tenho consultado diversos documentos relativos aos trabalhos de demarcação desta fronteira e até o momento não localizei qualquer informação que desse algum respaldo a respeito. Em uma carta encaminhada ao comissário português Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, na comissão mista de demarcação da fronteira, datada 6 de março de 1785, o comissário espanhol José Varela e Ulloa, exige a retirada de estabelecimentos portugueses (quatro estância e duas charqueadas) localizados na margem meridional do arroio Piratini, citando, inclusive quais seriam estes estabelecimentos: dos Monis, dos Cangas, dos Correa Pinto e dos Ferreira. Nenhuma referência a qualquer outro estabelecimento.
    Rubens

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