Mas a homenagem chegou tarde para a grande maioria dos deputados cassados pelo regime: dos 173, apenas 26 estão vivos ainda hoje. Outros desapareceram nas mãos da repressão, como Rubens Paiva, então eleito pelo PTB. Erundina explica que os parlamentares já falecidos estarão representados por familiares, que receberão o mandato simbólico in memoriam. "Foi mais uma ideia dentre tantas outras que tivemos para resgatar a memória e trazer para as novas gerações uma história que está se apagando", justifica a deputada, para quem 2012 tem sido um ano bastante positivo para todos que exigem saber o que ocorreu dentro e fora dos porões da ditadura.
São Paulo – No próximo dia 6 de dezembro, uma quinta-feira, a Câmara dos Deputados irá devolver simbolicamente o mandato de 173 parlamentares cassados pelos militares em diferentes momentos da ditadura. "É uma reparação à soberania popular, porque o mandato era do povo", explicou à RBA a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), que preside a Comissão de Memória, Verdade e Justiça da Câmara e está à frente da cerimônia. "Será uma sessão solene com todas as pompas e circunstâncias de um ato de reparação de um triste período que não poderá jamais se repetir." Até mesmo os Dragões da Independência, diz, estarão presentes. E haverá tapete vermelho.
Erundina com a cerimônia, mas seu interesse pelos "anos
de cumbo" não parará por aí. Já tramita pela Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania da Câmara um projeto de lei que pretende modificar a Lei de
Anistia e abrir uma brecha para a punição de agentes do Estado que mataram,
sequestraram e torturaram durante a ditadura. Ela é a autora da matéria.
"Enquanto não virarmos a página e limparmos a história daquele período,
punindo os responsáveis, vai ficar sempre essa sombra pairando sobre a nação brasileira
e a democracia de nosso país." Confira abaixo trechos da entrevista:
Como surgiu essa iniciativa?
Tivemos essa ideia na Comissão Memória, Verdade e Justiça,
que eu presido. Essa Comissão tem uma agenda de trabalho e uma série de
atividades. Algumas semanas atrás fizemos uma sessão solene junto com a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) em homenagem aos advogados de presos políticos.
Todos esses fatos e personagens são parte dessa história que está sendo
resgatada agora com a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e outras iniciativas
nas Assembleias Legislativas. Entre essas ideias, nos ocorreu fazer uma sessão
solene, igualzinha à sessão de posse, para devolver os mandatos cassados aos
deputados que ainda estão vivos – são 26, mas eram 27, um deles faleceu há
pouco.
Muitos familiares também estarão presentes para receber in
memoriam essa homenagem a seus entes queridos que tiveram mandatos cassados
pela ditadura. Ao mesmo tempo faremos uma exposição de fotos referentes àquele
período e aos acontecimentos que tiveram lugar na Câmara dos Deputados e no
Congresso, que foi fechado três vezes. Também lançaremos um livro sobre aquele
período, elaborado pelos historiadores da Casa. Foi uma ideia dentre tantas
outras para resgatar a memória e trazer para as novas gerações uma história que
está se apagando.
A senhora avalia 2012 como um ano positivo para o resgate da
verdade e memória histórica?
Sem dúvida, porque tudo isso é um processo – e um processo
doloroso, que volta a abrir uma ferida que está ainda sangrando. Mas é preciso
fazer. Como diz Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, se você não lava a
ferida, a ferida não sara. Então, temos de lavar essa ferida, e ela tem de
receber a luz do sol, da verdade e do perdão, para que a gente possa dizer:
'olha, está completo o processo de redemocratização do país'. Enquanto não
virarmos a página e limparmos a história daquele período, punindo os responsáveis,
vai ficar sempre essa sombra pairando sobre a nação brasileira e a democracia
de nosso país.
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, entregou há
poucos dias documentos à comissão gaúcha da verdade e à CNV sobre a morte do
deputado Rubens Paiva, um dos parlamentares cassados pela ditadura. Essa é uma
história-chave a ser desvendada?
Sem dúvida. É um crime que ainda continua. Enquanto não se
revelar o que aconteceu de fato com Rubens Paiva, onde estão seus restos
mortais e quem determinou seu sequestro, tortura e morte, o crime não
prescreve. Isso é parte da legislação internacional de direitos humanos. Um
crime não esclarecido fica pendente – é um crime continuado. O caso de Rubens
Paiva e muitos outros ainda carecem de esclarecimento. Fala-se em 144
desaparecidos, mas tem gente que garante que são muitos mais – por exemplo, o
massacre contra os Waimiri-Atroari, etnia indígena que foi dizimada na
Amazônia. Estima-se que 2 mil foram assassinados durante a construção de uma
rodovia que passava por dentro de suas terras.
Camponeses, também. No Araguaia, tivemos a oportunidade de
fazer uma audiência pública com dois militares que atuaram na repressão aos
opositores ao regime. Há um camponês que tem apenas um braço, porque sua
família foi acusada de ajudar os guerrilheiros. Os militares explodiram uma
bomba na casa dele, ele perdeu o braço e seu irmão morreu – mas sumiram com o
corpo. Há muita coisa para ser trazida ao conhecimento da sociedade, para que
os responsáveis sejam conhecidos e punidos. Sem isso, não se concluirá o
processo de redemocratização do país.
No Brasil, diferentemente de alguns países vizinhos, o
cidadão não pode apresentar diretamente à Justiça uma ação sobre violações de
direitos humanos. Nesse momento da democracia brasileira, quais as janelas
abertas para o cidadão que deseja se envolver nesse processo de resgate da
memória histórica?
A Justiça não acolhe, mas o Ministério Público (MP), sim.
Quem se sentir prejudicado e punido em seus direitos humanos pode entrar com uma
queixa-crime no MP e ele pode transformá-la num processo criminal, com
investigações, provas e documentos que podem ser encaminhados ao Judiciário. Se
essa pessoa quiser vir depor em nossa Comissão aqui na Câmara, iremos acolher
esse depoimento, com sigilo, se a pessoa quiser, e encaminhá-lo ao MP e à CNV,
com a qual vamos assinar m convênio. Todos os documentos que estamos apurando,
tudo vai para a CNV, pois é ela quem tem o poder legal para apurar os fatos. A
CNV não prevê a punição contra os responsáveis pelos crimes, mas a gente
imagina que os desdobramentos daquilo que vier ao conhecimento público serão,
necessariamente, em processo criminal.
Aí precisamos rever o conceito da Lei da Anistia. O Brasil é
o único país que anistiou torturadores, sequestradores, assassinos junto com as
vítimas do regime ditatorial. Temos que rever essa lei. Inclusive tenho um
projeto de lei, que está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania,
pendente de votação, que é pra retirar o artigo primeiro e acabar com a Anistia
àqueles que cometeram crime de lesa-humanidade. A Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) vem cobrando do Estado brasileiro para que revele a
verdade sobre os crimes da guerrilha do Araguaia e revise a Lei de Anistia. São
questões que devemos enfrentar. Por isso, eventos como esse, que estamos
programando pro dia 6 de dezembro, tem um simbolismo e força política
necessários para que a gente adquira força para conduzir essas mudanças.
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